A legitimidade da percepção dos Quintos

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Por Abilio Fernandes das Neves Neto – Analista Judiciário – TRF2 – matrícula 10125 – lotação no gabinete do Des. Fed. Marcello Granado

  Nós, servidores e servidoras do Poder Judiciário da União (PJU), que recebemos mensalmente parcelas remuneratórias decorrentes da incorporação de frações dos valores percebidos em decorrência do exercício de função comissionada (FC) e/ou de cargo em comissão (CJ), estamos vivendo, desde o fatídico dia 19/03/2015, em estado de profunda apreensão, para não dizer terror, ante a possibilidade de perdermos os valores incorporados no período compreendido entre a edição da Lei nº 9.624/1998 e a MP nº 2.225-48/2001.

  Nesse dia, o Plenário do STF, por apertada maioria, conheceu do recurso extraordinário (RE 638.115/CE) e, também por maioria, adotou o entendimento de que ofende o princípio da legalidade a decisão que concede a incorporação de quintos pelo exercício de função comissionada no período de 08/04/1998 até 04/09/2001, ante a carência de fundamento legal.

  Após seguidos embargos de declaração opostos e rejeitados, surgiu informação no sistema eletrônico de informações processuais do STF de que mais uma leva de embargos de declaração buscando garantir, ao que se sabe, as situações constituídas definitivamente, seja pela decadência administrativa ou pela coisa julgada, o que implicaria na manutenção da percepção dessa espécie remuneratória para milhares de servidores e servidoras.

  Visando jogar um pouco de luz e defender a legitimidade desse direito, considerando ter sido extinto há quase duas décadas, passo a discorrer acerca do histórico legal e dos fundamentos morais, sociais, econômicos e jurídicos que justificam a incorporação e manutenção da sua fruição, inclusive no período afetado pela decisão do STF.

  HISTÓRICO LEGAL

  A Lei nº 1.711/52 – Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União – introduziu no ordenamento jurídico pátrio o direito do servidor de perceber incorporado aos proventos de aposentadoria as vantagens da comissão ou função gratificada que se encontrasse exercendo, ou que houvesse exercido, segundo os critérios estabelecidos no art. 180.

  Com o advento da Lei nº 6.732, de 04/12/1979, o servidor público federal da ativa passou a ter o direito de incorporar à sua remuneração frações equivalentes a 1/5 do valor da gratificação de função do Grupo Direção e Assistência Intermediárias, ou da diferença entre o vencimento do cargo ou função de confiança do Grupo Direção e Assessoramento Superiores ou do cargo de natureza especial previsto em Lei, ou da Função de Assessoramento Superior (FAS), e o do cargo efetivo, como vantagem pessoal, na forma estabelecida pelo art. 2º.

  A Lei nº 8.112, de 11/12/1990 – Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais -, que, dentre outras coisas, revogou a Lei nº 1.711/52, previa, em seu art. 62, que a gratificação devida ao servidor investido em função de direção, chefia ou assessoramento incorporaria à sua remuneração e integraria os proventos de aposentadoria, na proporção de 1/5 por ano de exercício em tais investiduras, até o limite de 5/5.

  A seguir, sobreveio a Lei nº 8.911, de 11/07/1994, que veio a dispor sobre a remuneração dos cargos em comissão e definiu critérios de incorporação de vantagens de que trata a Lei nº 8.112/90 – art. 62 -, no âmbito do Poder Executivo.

  A incorporação da retribuição pelo exercício de função de direção, chefia ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de natureza especial a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911/94 foi suprimida com a edição da Lei nº 9.527, de 10/12/1997 – art. 15, caput -, passando tal parcela dos vencimentos a se constituir, a partir de 11/11/1997, em vantagem pessoal nominalmente identificada, sujeita exclusivamente à atualização decorrente da revisão geral da remuneração dos servidores públicos federais – § 1º do art. 15.

  A Lei nº 9.624, de 02/04/1998, veio alterar dispositivos da Lei nº 8.911/94, prevendo, ainda, a concessão ou atualização de parcelas de “quintos” no período de 19/01/1995 até a sua publicação – art. 3º.

  Por fim, a MP nº 2.225, de 04/09/2001, incluiu na Lei nº 8.112/90 o art. 62-A, a partir do qual os quintos incorporados pelos servidores federais seriam transformados em vantagem pessoal nominalmente identificada – VPNI.

  FUNDAMENTOS DA INCORPORAÇÃO DOS QUINTOS

  . MORAL/SOCIAL/ECONÔMICO

  Os cargos em comissão e as funções comissionadas do PJU configuram retribuição ao servidor e à servidora ocupante de cargo efetivo investido em função de direção, chefia ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de Natureza Especial.

  A incorporação paulatina de parcelas da retribuição extra significava para o(a) servidor(a) uma espécie de seguro financeiro diante das vicissitudes do serviço público e da provisoriedade da ocupação de CJ e FC, possibilitando-lhe, inclusive, abrir mão da função em certas situações da vida profissional ou pessoal.

  Com a incorporação definitiva implantada no contracheque, vinha a certeza de que aquela parcela remuneratória o acompanharia inclusive na aposentadoria.

  Com isso, pode-se imaginar a quantidade de servidores e servidoras que atualmente possuem compromissos financeiros atrelados a essa parcela remuneratória, tais como financiamentos imobiliários, empréstimos consignados, mensalidades escolares, dívidas com cartão de crédito, etc.

  Além disso, deve haver centenas de milhares de casos de servidores e servidoras que contam com essa retribuição para ajudar financeiramente parentes e/ou bancarem prestadores de serviços variados, tais como diaristas, acompanhantes, etc.

  Com a supressão da parcela de “quintos” determinada pelo Conselho da Justiça Federal a partir de outubro próximo, não é preciso muita sagacidade para se perceber o estrago financeiro, o abalo na vida de cada um dos servidores e servidoras, bem como de outras pessoas que deles dependem.

  A propósito, como ficariam os empréstimos consignados que utilizam o limite de comprometimento da renda dos servidores mutuários? E a crença na irredutibilidade de vencimentos que possui proteção constitucional?

  Evidencia-se, assim, prejuízos financeiros, morais, afetivos, legais, de saúde, etc., certamente não dimensionados pelos responsáveis por tamanha INJUSTIÇA.

  . JURÍDICO

  Do exercício das funções comissionadas e dos cargos em comissão pelos servidores e servidoras do PJU, no período de 08/04/1998 até 04/09/2001, adveio a incorporação à remuneração de parcelas dos valores dessas espécies remuneratórias, denominadas genericamente “quintos”, na forma das leis de regência à época dos fatos, conforme decisão do Ministro Presidente do CJF exarada nos autos do Processo Administrativo nº 2004.164940.

  Nesse momento, a Administração incorporou definitivamente essa parcela remuneratória nos estipêndios dos servidores e servidoras do PJU que tinham exercido as funções e cargos e prometeu quitar a dívida dos atrasados parceladamente, de acordo com os orçamentos dos anos seguintes.

  Contudo, diversos órgãos jurisdicionais que compõem a Justiça Federal pagaram administrativamente apenas parcelas das dívidas, levando os sindicatos, associações, servidores, etc. a ajuizarem ações visando o cumprimento da obrigação de pagar prometida pela Administração, diante da mora.

  Os órgãos do Judiciário Federal, majoritariamente, reconheceram a mora da Administração em centenas de milhares de ações judiciais; muitas delas foram desaguar no STJ, que pacificou sua compreensão sobre a matéria em favor dos servidores e servidoras, conforme se vê, dentre tantos outros, dos termos do acórdão proferido no REsp 1.270.439/PR, relatado pelo em. Min. Castro Meira, 1ª Seção, publicado no DJe de 02/08/2013 – Tema Repetitivo 529 -.

  Conforme as decisões judiciais transitavam em julgado, os servidores e servidoras passaram a receber via execução os valores devidos pela Administração.

  Esse quadro – reconhecimento da Administração e jurisprudência consolidada pelo STJ – levaram os servidores e servidoras do PJU a considerarem como legítimo e indiscutível o direito à incorporação dos “quintos” no período entre 1998/2001, e a CONFIAREM que em algum momento de suas vidas funcionais, seja no âmbito administrativo ou no judicial, o pagamento dos atrasados iria ocorrer.

  A CONFIANÇA não sofreu abalo nem mesmo com a decisão pela existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada pela UNIÃO nos autos do supracitado RE nº 638.115/CE, diante da convicção de que a matéria não era de natureza constitucional, mas, mesmo que fosse assim considerada pela maioria dos ministros e ministras do STF, o direito à incorporação era insofismável.

  Todavia, como dito alhures, uma apertada maioria conheceu do recurso extraordinário e uma outra acompanhou, no mérito, o entendimento do Relator, no sentido de ofensa ao princípio da legalidade ante a carência de fundamento legal que amparasse a incorporação de quintos pelo exercício de função comissionada no período de 8/4/1998 até 4/9/2001.

  O voto condutor do acórdão do RE nº 638.115/CE prestigia a segurança jurídica, ao obstar a repetição de indébito em relação os servidores que receberam de boa-fé os quintos pagos até a data do julgamento, mas não enfrenta a aplicação dos preceitos que protegem a coisa julgada e a aplicação da decadência administrativa, como corolários da aventada segurança jurídica.

  O comando contido no voto condutor, no sentido de cessar a ultra-atividade das incorporações, passa ao largo das milhares de situações jurídicas constituídas durante o longo período que decorreu entre o reconhecimento pela Administração do direito às incorporações e a convicção adotada pelo STF, seja por força da coisa julgada, seja pela decadência do direito de a Administração rever seus atos.

  Se o direito à incorporação foi usufruído de boa-fé – e é óbvio que foi -, como diz o voto condutor, não há como afastar a decadência administrativa, tampouco a coisa julgada.

  Além disso, a proteção da confiança legítima, aspecto subjetivo do referido princípio da segurança jurídica, impõe que se leve em conta a boa-fé, no caso, dos servidores e servidoras do PJU, que acreditaram que o ato praticado pela presidência do CJF, no longínquo ano de 2004, era lícito.

  Dando contorno legal à aplicação processual da proteção à confiança legítima, cumpre lembrar que o CPC/2015 prevê que “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica” – § 3º do art. 927 -, sem olvidar-se que o § 4º do art. 927 menciona expressamente a necessidade de as decisões judiciais levarem em conta “os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”.

  CONCLUSÃO

  As mudanças legislativas perpetradas no Regime Jurídico Único e nas normas constitucionais que tratam da vida funcional dos servidores públicos federais, inclusive no Regime Próprio de Previdência Social, a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, feriram de morte, a meu sentir, a unificação da categoria e fomentaram a cizânia, ainda mais em tempos de culto à individualidade.

  Urge que encontremos, não obstante a disparidade de tratamento legal, pautas de reivindicações que façam com que servidores e servidoras de todos os tempos se reconheçam como classe.

  A solidariedade entre gerações parece-me o fio condutor desse reconhecimento.

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