Formatos organizacionais, carreiras e capacidades estatais

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Uma proposta para atender os desafios emergentes da sociedade brasileira no século 21.

O modelo predominante nas organizações públicas brasileiras da administração direta (dominada pelos ministérios setoriais e instâncias do centro de governo) e indireta (as empresas públicas, autarquias, fundações etc.) remonta ao período dos 30 anos gloriosos da expansão capitalista nos países centrais (1950 a 1980).

Neste período, houve expansão das estruturas empresariais e também das organizações do próprio Estado. O período ainda é marcado por duas outras características relevantes: i) a criação e super especialização de funções administrativas no interior das grandes empresas, a saber: fortalecimento jurídico, orçamento e contabilidade, planejamento estratégico, recursos humanos, logística, gerenciamento de projetos, comunicação e publicidade etc.; e ii) a difusão da grande empresa de natureza oligopólica e transnacional, integrada verticalmente, de tal modo que do vigia ao presidente, todos os funcionários pertenceriam ao mesmo conglomerado.

Redunda desse formato a ideologia do “vestir a camisa da empresa” e “da grande empresa como extensão da própria família”, por meio da qual os funcionários seriam induzidos a se engajar, dedicar-se e comprometer-se umbilicalmente com os objetivos econômicos e administrativos das respectivas empresas, constituindo laços materiais e afetivos com as mesmas e entre si. Está aí a origem da formação do ethos empresarial em sintonia com o ethos sindical, ambos interessados no sucesso e melhores resultados econômicos possíveis para si.

O mesmo conjunto de sentimentos, crenças e atitudes esteve também presente no âmbito das organizações públicas, aspecto reforçado, neste caso, pela tendência de maior estabilidade e longevidade dos vínculos e contratos. No Brasil, desde a CF-1988, sobretudo em função da criação e fortalecimento do RJU (Regime Jurídico Único) em âmbito federal, os ethos organizacional e sindical no setor público se transformaram praticamente em uma coisa só.

Talvez por isso, enquanto no mundo privado, desde as décadas de 1970 e 1980, o paradigma de organização empresarial foi-se horizontalizando e os vínculos laborais se precarizando, no setor público federal brasileiro tem havido muito mais resistência às mesmas tendências. Mesmo assim, desde a década de 1990, por meio da ideologia liberal dominante de Estado mínimo e da reforma gerencialista parcialmente implementada, houve também certa horizontalização organizacional, com diversificação dos tipos de vínculos e certa precarização das relações e condições laborais naqueles casos em que o RJU não se constituiu como o tipo dominante.

As propostas e novos formatos jurídicos tendentes à terceirização de atividades não finalísticas, à privatização de setores estatais rentáveis, ao estabelecimento de parcerias público-privadas, ao consorciamento do Estado com setores privados não lucrativos e à contratação indireta por intermédio de organismos internacionais e fundações universitárias de apoio foram as formas principais por meio das quais as novas tendências empresariais migraram para o setor público no Brasil. Se isso não alterou radicalmente os modelos organizacionais até então dominantes e as relações laborais no interior do Estado, causou enorme fragmentação institucional e fez crescer o hibridismo e as disfuncionalidades em determinadas áreas de atuação governamental.

É preciso lembrar que, em termos legais, o modelo de serviço público federal brasileiro remonta à década de 1970, com a edição da Lei 5.645/1970, sancionada na esteira do Decreto-Lei 200/1967. Seguindo o modelo da época, baseava-se na constituição de um Plano de Classificação de Cargos único para a administração federal.

Posteriormente, o próprio Estatuto dos Servidores Federais, a Lei 8.112/1990, previa tratamento equânime entre os servidores públicos dos três poderes estatais. No entanto, nem nos governos militares na década de 1970, nem naqueles democráticos subsequentes o Poder Executivo federal conseguiu avançar na implementação do sistema de carreiras previsto nas respectivas Constituições de 1967 e 1988.

De lá até aqui, por motivos diversos e em contextos históricos específicos, o plano único foi sendo fragmentado, produzindo um sistema complexo que pode ser hoje caracterizado como um híbrido institucional, vale dizer: um sistema muito heterogêneo e desigual. Disso decorrem boa parte das disfuncionalidades do sistema e das dificuldades em racionalizá-lo rumo a um desenho institucional mais efetivo, eficaz e eficiente. Por aqui convivem carreiras com estruturas variadas, algumas compostas por planos com grande quantidade e variedade de cargos, sem coerência sistêmica, seja nos critérios de avaliação e progressão, seja nas remunerações e demais incentivos.

Para se ter ideia do grau de fragmentação, rigidez e complexidade burocrática do sistema vigente, basta dizer que a administração federal possui mais de 2.000 cargos distintos, cerca de 300 agrupamentos sistêmicos e mais de 250 tabelas remuneratórias, 44 planos de cargos e 119 carreiras relativamente estruturadas. A multiplicidade de arranjos organizativos distintos (planos, carreiras, planos de carreiras, planos de cargos, planos de cargos e carreiras, cargos isolados) também se sobressai.

Em termos remuneratórios, enquanto carreiras jurídicas, policiais (delegado e perito) e tributárias têm remuneração mensal média acima dos R$ 30 mil, em permanentes artifícios para buscar o teto, carreiras administrativas (setoriais ou transversais) também de nível superior raramente passam dos R$ 10 mil mensais. Qualquer proposta que vise racionalizar ou harmonizar tal sistema deve ser capaz de enfrentar esses problemas.

Nesse contexto, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) está trabalhando a adoção de novas formas de atuação que possam contribuir para frear a proliferação dessas desigualdades e racionalizar a estrutura administrativa, no que se refere ao seu sistema de carreiras, de modo incremental, por meio de atos infraconstitucionais. As novas formas de gestão, das quais a Portaria Ministerial 5.127 de 13 de agosto de 2024 faz parte, visam a, paulatinamente:

  1. centralizar a supervisão e a coordenação para fins da alocação, movimentação e gestão de carreiras;
  2. atualizar e harmonizar as funções e atribuições desses planos, cargos e carreiras, com vistas à modernização normativa dos mesmos;
  3. transversalizar as formas de organização dos novos planos, cargos e carreiras, de sorte a permitir movimentações mais céleres e adequadas de servidores às necessidades da administração;
  4. transformar cargos obsoletos e vagos em cargos com remunerações e atribuições perfiladas às mudanças acima indicadas, de natureza transversal e voltados à transformação qualitativa do Estado; e
  5. equalizar as estruturas remuneratórias, por aproximações sucessivas, de agrupamentos de planos, cargos e carreiras similares, seja por áreas de atuação governamental, seja por níveis de escolaridade, seja ainda por níveis de atribuições administrativas dos mesmos.

A Figura 3 abaixo sintetiza esse processo possível e necessário de racionalização do sistema de planos, carreiras e cargos na Administração Pública federal brasileira.

A aposta do MGI para iniciar esse processo é estabelecer um conjunto de diretrizes, presentes na Portaria 5.127 supracitada, que irão nortear as iniciativas de órgãos e entidades da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional na elaboração de propostas de criação, ampliação e reestruturação de planos, carreiras e cargos efetivos.

A referida Portaria, a princípio, não tem o condão de alterar regras de carreiras vigentes e já estabelecidas em leis, mas, ao longo do tempo e em conjunto com políticas salariais e de concursos mais articuladas entre si, pode induzir à racionalização e organização do pessoal civil do Poder Executivo federal, uma vez que propiciará a simplificação de planos, carreiras e cargos efetivos com atribuições similares e de suas estruturas remuneratórias, além de interromper a expansão desordenada dos mesmos.

Para reorganizar os cargos e as carreiras, a proposta procurará promover a atualização do trabalho desenvolvido pelos servidores, mediante a definição de atribuições mais amplas e complexas, de acordo com as áreas primordiais de atuação do Estado. Essa proposta reflete o necessário redirecionamento da atuação estatal para o atendimento dos desafios emergentes da sociedade brasileira no século 21.

Propõe-se definir atribuições claras e abrangentes, que proporcionem maior mobilidade dos servidores entre órgãos, entidades e setores da Administração Pública. Os cargos também poderão ser classificados em especialidades quando forem necessárias determinadas formações especializadas ou o domínio de habilidades específicas.

Ademais, busca-se limitar a criação de cargos com atribuições similares aos ja? existentes ou com atribuições temporárias e/ou tendentes a? obsolescência, além daqueles estritamente operacionais, de apoio lateral ou auxiliar. Ao fixar essas limitações, procura-se reduzir as sobreposições de atribuições e possibilitar a? Administração concentrar seus esforços na sua atuação finalística e/ou que envolva maior grau de complexidade.

Em relação à estrutura remuneratória, as diretrizes visam a simplificar e priorizar a remuneração em parcela única, associar titulações acadêmicas ao desenvolvimento na carreira e não apenas ao incremento de parcelas extras, vedar o tratamento remuneratório diferenciado para cargos de mesma natureza e com similar complexidade de atribuições e responsabilidades e vedar a criação de espécies remuneratórias sem contribuição previdenciária que possam ser incorporadas aos proventos de aposentadoria.

As mudanças sugeridas acima precisam levar em conta que nem o paradigma organizacional da integração vertical completa do pós-guerra, nem o da horizontalização – via pejotizaçãouberização e precarização – levado ao extremo pelo setor privado, são referências válidas para a transformação qualitativa que o Estado brasileiro precisa realizar no século 21. Em nosso caso, trata-se de construir, em diálogo com as organizações públicas e entidades representativas dos servidores, um novo e mais adequado modelo de gestão e de governança de carreiras.

Em linhas gerais, o novo modelo precisa ser capaz de combinar a preservação e valorização das funções públicas setoriais estratégicas de cada órgão ou ministério, ao mesmo tempo em que reforça e aperfeiçoa as formas de organização, governança e funcionamento das funções consideradas transversais e estruturantes aos macroprocessos administrativos necessários às políticas públicas.

Deste modo, órgãos e ministérios teriam apenas uma ou poucas carreiras como exclusivas, uma forma de preservar a identidade funcional das mesmas e permitir aperfeiçoamentos qualitativos permanentes em termos de seus requisitos de entrada, capacitação, desenvolvimento profissional, desempenho e atribuições precípuas.

As demais funções seriam supridas, principalmente, por agrupamentos de carreiras transversais, diferenciadas dos pontos de vista funcional e remuneratório, por níveis de complexidade e atribuições específicas. No primeiro caso, os próprios órgãos governariam as suas carreiras setoriais estratégicas. No segundo, estruturas de governança (supervisão e coordenação) de carreiras teriam que ser criadas para tanto. 

Neste segundo conjunto de funções e carreiras estariam, além daquelas relacionadas ao chamado ciclo ampliado de gestão das políticas públicas, também aquelas funções e carreiras de apoio técnico especializado, de caráter permanente, que podem não representar direta e essencialmente a atuação finalística de determinado órgão ou entidade, mas sem as quais essas funções ficariam inviabilizadas.

Tais funções de apoio técnico especializado seriam exercidas, sempre que possível, por carreiras transversais com todas as garantias e prerrogativas conferidas a um corpo de servidores estáveis, de modo a proteger o Estado e garantir a continuidade dos serviços públicos ao longo do tempo.

O modelo sistêmico de estruturação da Administração Pública, como previsto no Decreto-Lei 200, de 1967, ainda em vigor, exemplifica tal perspectiva: sistemas de pessoal, orçamento, logística, tecnologia da informação e outros, que transpassam o conjunto de órgãos e entidades, seriam exercidos por carreiras transversais, por servidores que desempenham as mesmas funções, mas estão em exercício em organizações distintas.

Se levada a cabo, estaremos diante de uma mudança conceitual e organizativa importante, segundo a qual o paradigma da verticalização de carreiras autocontidas em seus respectivos órgãos será gradativamente substituído pelo paradigma de carreiras criadas e governadas pela lógica das grandes e intransferíveis funções administrativas do Poder Público federal.

Em termos concretos, para ilustrar o argumento, um analista ambiental ou um especialista em regulação, por exemplo, deveriam se dedicar exclusivamente ao desempenho de suas atribuições precípuas, enquanto todas as funções de apoio administrativo, ainda que técnicas e especializadas, seriam exercidas por carreiras transversais, deslocando o foco da atuação estatal ao fornecimento de serviços públicos e melhor atendimento à população.

Fonte: Portal Jota

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