A Lei 14.540/2023 teve origem no Poder Legislativo e foi sancionada pelo presidente da República em conjunto com os ministros dos Direitos Humanos, da Segurança Pública, da Educação e das Mulheres em 3 de abril de 2023.
A proposta inicial se deu por meio de Medida Provisória (nº 1.140/2022) e se direcionava ao ambiente escolar, com ações de capacitação para docentes e equipe pedagógica das instituições de ensino. Além disso, previa a divulgação de cartilhas e informativos para o enfrentamento ao assédio e demais crimes contra a dignidade sexual. Em 3 de abril de 2023, a medida provisória é convertida em lei, com necessária vinculação às instituições públicas e privadas referenciadas na legislação.
A lei vale-se dos conceitos de violência e abuso adotados no Código Penal, Lei Maria da Penha e Estatuto da Criança e do Adolescente.
Conjunto de normas
A lei foi elaborada num contexto em que outras legislações com o mesmo objeto de proteção (proteção da mulher do ambiente de trabalho; prevenção da violência sexual e disseminação de material informativo sobre crimes contra a dignidade sexual) foram sancionadas, a saber: Leis nº 14.457 em setembro de 2022 (institui o Programa Emprega + Mulheres, e altera a Consolidação das Leis do Trabalho); nº 14.450 em abril de 2023 (institui o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual) e nº 14.611 em julho de 2023 (dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens).
Todas essas normas são fruto de uma crescente pressão popular pela implementação de regramentos legais que estabeleçam critérios de igualdade entre homens e mulheres e mecanismos para prevenção de assédio sexual e práticas afins, em especial no ambiente de trabalho e ensino.
Foco na prevenção
A legislação em questão tem como foco a prevenção e disponibilização de material educativo além de capacitação de funcionários da administração pública e de setores privados específicos. Não há qualquer previsão de punição no âmbito penal ou administrativo caso seja constatada a prática de crimes contra a dignidade sexual, vez que essa previsão já está expressa no Código Penal e Códigos de Ética das entidades de classe.
A norma surge para abarcar uma esfera de proteção até então intocada: a prevenção. Enquanto o Código Penal e Lei Maria da Penha são acionadas após constatado indícios mínimos da prática delituosa através da punição, essa legislação se insere na lógica de dissuasão do possível agente do cometimento do ato atentatório contra a dignidade sexual, pela educação, capacitação e informação qualificada.
Inclusive, a elaboração das legislações mencionadas impactou a alteração de importantes documentos internos de instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil, Advocacia Geral da União e Conselho Nacional de Justiça, todos na direção de implementar o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual.
Esse movimento revela a aderência dos órgãos públicos à nova legislação, além de representar a compreensão acertada da importância de se introduzir as normas internas que protejam a dignidade sexual da mulher, em especial, no ambiente de trabalho e ensino.
Instituições privadas
Já no setor privado, em razão do artigo 10º da lei, enquanto não houver regulamentação da matéria pelos entes responsáveis, não é possível cobrar as instituições a pronta implementação do programa objeto da Lei. Ainda que seja desejável que as instituições privadas abarcadas pela lei façam valer desde já o programa, os setores privados não estão obrigados ao seu cumprimento de imediato.
Enquadramento das instituições de educação superior
A lei estabelece em seu artigo primeiro, o seguinte:
“Art. 1º Esta Lei institui o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal.”
Em seu artigo 2º, parágrafo 1º, há um incremento dos entes submetidos à regra legal, incluindo instituições privadas específicas:
“§ 1º. O Programa aplica-se a todas as instituições privadas em que haja a prestação de serviços públicos por meio de concessão, permissão, autorização ou qualquer outra forma de delegação.”
A legislação não utiliza o termo “ensino superior” em momento algum, no entanto, a redação do artigo acima deixa claro a vinculação das IES como instituições obrigadas. No mais, a lei opta por excluir o ensino básico das imposições legais. Vejamos o parágrafo segundo do artigo segundo:
§ 2º. Nas duas primeiras etapas da educação básica, o Programa restringir-se-á à formação continuada dos profissionais de educação, na forma do inciso II do caput do art. 4º desta Lei.
Soma-se a isso a proposta explícita da deputada Alice Portugal, relatora da Medida Provisória nº 1.140/2022, que em seu parecer enviado ao Poder Executivo e apresentado em plenário em março de 2023 (4), dá especial importância na aderência das instituições de ensino privadas na elaboração do programa objeto da Lei, notadamente pelo aumento de casos de violência sexual no interior de instituições de ensino.
Exigências da lei
Em se tratando de legislação com foco na prevenção de práticas contra a dignidade sexual, seu grande trunfo está na previsão da implementação de um programa que visa a subsidiar funcionários e demais agentes com informação de qualidade, conteúdo informativo mínimo e esclarecimento sobre o que, de fato, constituem os crimes contra a dignidade sexual, nos termos do artigo 5º da lei.
Está previsto ainda a obrigatoriedade de manter o registro dos programas de capacitação oferecidos pela Instituição pelo prazo de cinco anos, conforme artigo 7º da lei:
Os órgãos e entidades abrangidos por esta Lei deverão manter, pelo período de 5 (cinco) anos, os registros de frequência, físicos ou eletrônicos, dos programas de capacitação ministrados na forma prevista no inciso VII do caput do art. 5º desta Lei.
Repita-se, essa é uma legislação com voltada à prevenção educativa, que valoriza a capacitação dos agentes e distribuição de informes, palestras, seminários e afins a serem feitos com regularidade nos ambientes citados.
Fiscalização do programa
O programa a ser implementado nas instituições obrigadas será fiscalizado pelo Poder Executivo através do próprio poder público nos termos do artigo 8º da lei. Quanto à fiscalização dos entes privados, em especial as IES, será de responsabilidade das agências reguladoras do setor de educação e o Ministério da Educação.
É como se nota no artigo 10º da lei, que atribui aos entes federativos responsáveis pela concessão, permissão, autorização e delegação, a responsabilidade pela regulamentação da matéria, nos seguintes termos:
“Art. 10. A aplicação desta Lei às instituições privadas a que se refere o §1º do art. 2º desta Lei ocorrerá após a regulamentação da matéria pelo ente federativo responsável pela concessão, permissão, autorização ou delegação.”
Isso significa que os entes privados, ainda que estejam submetidos à lei, para a devida implementação do programa, deverão aguardar a regulamentação do tema pelo ente federativo para fins de fiscalização do poder público e MEC. Antes da devida regulamentação, os entes privados mencionados não serão cobrados pela implementação do programa objeto da legislação.
Conclusões
O grande trunfo da Lei nº14.540/2023 é seu foco na prevenção de atos contra a dignidade sexual por meio de distribuição de material informativo e implementação de verdadeiro programa educativo voltado à capacitação dos funcionários e agentes dos setores obrigados.
Ainda que a cultura misógina e machista seja dificilmente extinta ou mascarada por meio de legislações penais ou educativas, certo é que parte do combate a condutas atentatórias à dignidade sexual da mulher poderá ser coibida pelo entendimento do público geral sobre os elementos que constituem a violência sexual contra a mulher e suas consequências.
Não há qualquer ingenuidade em considerar que leis são o grande baluarte contra a violência sexual, ainda assim, todas medidas adotadas na direção de conter essas práticas devem ser aplaudidas e vigiadas constantemente.
Enquanto boa parte da população e parte do poder público gastam suas energias na velha e falha promessa de maior rigor punitivo, essa legislação segue a evolução civilizatória e orientações exaustivas de pesquisadores da área de violência contra a mulher e do Direito Penal e apostam as cartas numa tática mais avançada: a educação como meio primeiro de prevenção.
Fonte: Conjur