Henrique Komatsu
A meritocracia é um modo de acesso a posições sociais pelo qual o mérito (performance segundo determinados critérios objetivos) define tanto o ingresso quanto o progresso do indivíduo em dado caminho. A meritocracia, portanto, não diz respeito ao que se alcançou, mas como se alcançou. Do ponto de vista social, ela não se verifica em função de quais posições da hierarquia social e econômica este ou aquele indivíduo ocupa, mas como esses indivíduos chegaram a tais pontos.
A meritocracia, desse modo, pressupõe uma situação de igualdade de condições materiais que permita a avaliação da performance de cada um para que se possa estabelecer quem terá acesso a dadas posições sociais, apenas segundo o mérito.
Dessa forma, bastante sucinta, Michael Young nos explica o conceito de meritocracia em seu livro “A Ascenção da Meritocracia”.
O ENEM, por exemplo, é uma proposta de avaliação pela meritocracia. Seleciona, via mérito acadêmico, o ingresso no ensino superior brasileiro.
Para garantir a igualdade entre os concorrentes, a prova é a mesma para todos. Todos têm o mesmo tempo para a resolução das questões. Acessam a graduação aqueles que obtiverem a maior pontuação. Há, ao menos aparentemente, igualdade de condições que garantem a meritocracia nesse tipo de certame.
A premissa que ampara o caráter meritocrático desse processo seletivo é que a avaliação para ingresso no ensino superior se dá nos dois dias de exames do ENEM. Garantida a isonomia naqueles dois dias, garante-se a seleção dos candidatos mais bem preparados segundo o mérito acadêmico.
No entanto, alguns discutem se a premissa é verdadeira. O ingresso no ensino superior realmente se dá naqueles dois dias? Não se daria antes? Ao longo do ensino médio, por exemplo? Ou mesmo em período anterior, ao longo do ensino fundamental? Ou, talvez, antes, antes mesmo que aquele vestibulando tivesse nascido?
Conforme movemos o ponto de início da disputa, as condições de igualdade tornam-se cada vez menos determináveis, até o momento em que desaparecem. No caso do ENEM, por exemplo, se a disputa começa no ensino médio, o aluno que teve acesso a uma educação precária, que não teve acesso a material didático de qualidade, que não teve acesso a transporte público regular, que não tem acesso à internet, alimentação… está disputando a vaga no ensino superior em condições de igualdade com o aluno do ensino privado?
Se o ponto de início da disputa for o ensino médio, pode-se dizer que estão presentes as condições de igualdde para afirmarmos que a vaga na universidade foi preenchida em função do mérito?
Lembrando que a meritocracia diz respeito não ao que se alcançou, mas como se alcançou.
A questão da meritocracia fica ainda menos aferível quando se coloca o ponteiro de aferição em pontos mais remotos do passado, como quando esse ponteiro ultrapassa gerações.
Numa determinada sociedade que preze o valor da meritocracia, que busque igualdade de condições entre seus cidadãos almejando que cada um posicione-se no tecido social de acordo com seus méritos, onde deve ser posicionado o ponteiro de aferição da isonomia, para que possamos garantir que tal sociedade se guie pela meritocracia?
Nesse ponto insere-se o problema da herança, da transmissão das grandes fortunas pela linha hereditária.
Os esforços e conquista de um membro da sociedade, ao serem repassados integralmente para seus herdeiros, não cria condições de desigualdade na geração seguinte?
A cada nova geração a ocupar o espaço social as condições não deveriam ser minimamente iguais para que se garantisse o caráter meritocrático dessa sociedade?
Hankelson e Wandenström, em estudo sobre a taxação de heranças na Suécia, afirmam que os impostos sobre heranças estão entre os instrumentos fiscais com efeitos mais diretos para a garantia de igualdade de oportunidades a cada nova geração numa dada sociedade.
No mesmo sentido, Thomas Piketty também indica que a taxação de heranças é um instrumento que incentiva o mérito na sociedade.
Ou seja, a taxação de heranças é uma forma de garantir que, a cada nova geração a ocupar o palco da realidade social na disputa por posições, existam mínimas condições de igualdade para que as posições sociais sejam preenchidas de acordo com a meritocracia e não em função da riqueza deixada pelos pais, avós, bisavós, etc.
Mas a coisa não é tão simples quanto parece.
Os economistas acima citados indicam que as ações humanas comportam certa contradição.
Por um lado, nós queremos a meritocracia, mas, por outro, também queremos as vantagens competitivas decorrentes do nosso mérito, o que nos torna mais eficientes. A herança é uma vantagem competitiva passada para a geração seguinte e que decorre de nosso trabalho.
Pikkety chama a atenção para o fato de que mesmo um indivíduo que não recebeu herança acredita que, por meio de seu trabalho deixará alguma para o seu filho. Por isso, em razão dessa expectativa, ele mesmo não deseja que a herança seja sobretaxada.
Ou seja, deve-se taxar a herança para não se criar disparidades competitivas exageradas, mas a taxação não deve ser tão grande que desincentive o trabalho e o acúmulo de riqueza, tão importantes no mundo capitalista.
É o que Piketty chama da escolha implicada na taxação de herança (trade-off) entre isonomia e eficiência. E há quem chame Piketty de comunista! Tempos estranhos.
O fato é que do ponto de vista social, a taxação de herança tem dois efeitos parafiscais (efeitos além da mera arrecadação): 1) garantir as condições de igualdade competitiva na sociedade para que se garanta a meritocracia e 2) manter o interesse dos cidadãos no trabalho e na acumulação de riqueza, criando um ambiente em que se anseie a competitividade e a eficiência.
Segundo o Banco Mundial, ao realizar análise do índice Gini, que mede o desvio da distribuição de renda dos indivíduos de um país, o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, perdendo apenas para África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique. Empata com Botsuana.
No entanto, apesar da absurda desigualdade entre os seus habitantes, é um dos países que menos taxa a herança. Os Estados da Federação brasileira com maior imposto sobre herança possuem alíquotas máximas de 8%, em razão do teto fixado pela Resolução 09/1992 do Senado Federal.
Na outra ponta do estudo, entre os países com baixa desigualdade social e que efetivamente buscam garantir um ambiente socioeconômico isonômico calcado na meritocracia, nota-se taxações sobre herança que variam entre 19% (Finlândia) e 55% (Japão). Quando se fala de taxação de herança em tais países, não se trata de taxar a casa própria ou o carro deixado pelo falecido. Não. A taxação de que se fala aqui são de fortunas que realmente desequilibram a maneira como um herdeiro ingressa na disputa por posições numa dada sociedade.
Diante de tais dados, há que se pensar se o Brasil é, de fato, um país em que impera a meritocracia. Há que se questionar se as posições sociais em nosso país são preenchidas segundo o mérito dos indivíduos que as ocupam.
Aumentar a taxação da riqueza e os investimentos em setores que diminuam a desigualdade social, como educação, seguridade social, saúde pública e direitos trabalhistas, são escolhas políticas que uma sociedade precisa fazer a fim de garantir que a dinâmica social seja regida pela meritocracia.
Tais escolhas políticas implicam em realizar o trade-off entre eficiência e isonomia.
Os que atualmente concentram a riqueza no Brasil, tendem a querer que sua riqueza acumulada não seja taxada, garantindo que seus descendentes mantenham vantagem competitiva sobre os demais.
Os que não possuem riqueza – neste que é o sétimo país mais desigual do mundo – tendem a querer que o Estado taxe a riqueza e invista em serviços que garantam igualdade entre os seus cidadãos (educação, saúde, trabalho, etc).
Há portanto uma disputa de interesses que contrapõem diferentes classes sociais, quando tratamos do assunto da taxação das heranças.
Hankelson e Wandenström levantam a hipótese de que as mais significativas taxações sobre heranças na Suécia deram-se em razão de dois motivos: a mobilização social no pós-guerra, quando a sociedade civil passou a exigir uma maior contribuição dos mais ricos para financiar a recuperação econômica do país, na medida em que os mais pobres já haviam sacrificado seus corpos com o trabalho e o combate nos campos de batalha.
O segundo motivo, indicado pelos pesquisadores, foi a ascenção de forças políticas social-democráticas que conseguiram pautar politicamente o debate da desigualdade social que havia se erguido na população.
No combate à COVID ficou evidente que a população mais pobre ficou mais exposta à morte e ao vírus, seja por falta de acesso ao sistema de saúde, seja por não ter recursos financeiros para manterem-se em isolamento social (única medida reputada eficaz no combate à Pandemia segundo a OMS), seja em razão do tipo precário de moradia (espaços pequenos, sem acesso à água, sem infraestrutura de informação, etc) que não permite a realização minimamente confortável de um isolamento social.
O combate à COVID também foi feito, em sua linha de frente, por trabalhadores assalariados, muitos deles recebendo valores mensais abaixo de cinco salários-mínimos, ou seja, pela camada da população que tem dificuldade em acumular riqueza e formar herança a ser deixada para seus descendentes.
O enfrentamento da questão do vírus foi coletiva, mas foi mais penosa e expôs a mais riscos, a camada mais pobre da população. Ignorar o custo da desigualdade social significa ignorar que a camada mais pobre da população pagou com a vida o enfrentamento social da Pandemia.
Além disso, importante lembrar que foram os Estados brasileiros, representados no Parlamento brasileiro pelo Senado Federal, que encabeçaram e lideraram o combate à Pandemia do Coronavírus.
Os governos estaduais e o parlamento brasileiro atualmente têm grande legitimidade, não apenas para avaliar os custos do efetivo combate à Pandemia (o custo da desigualdade social), como também possuem legitimidade para pautar nacionalmente as discussões sobre como garantir que essa desigualdade não se perpetue.
No que tange ao assunto que tratamos neste artigo, de maneira breve, talvez seja o momento de canalizar essa mobilização social para que se concretize a efetiva taxação de heranças e grandes fortunas de modo a garantir que nos tornemos uma sociedade mais voltada à meritocracia, e que seja garantida a igualdade de condições àqueles que desejam galgar posições no tecido social.
Talvez seja o momento de se rever a portaria 09/1992 do Senado Federal para se aumentar a taxação sobre a herança no Brasil, num esforço de se criar um ambiente mais igualitário, no qual possa ser realizada a tão bradada meritocracia.
Autor
Henrique Komatsu
Servidor da Justiça Federal
Coordenador de Comunicação e Relações Sociais do SINDJUFE/MS.
Referências
PIKKETY, T, SAEZ, E, ZUCKMAN, G, Rethinking Capital and Wealth Taxation, 2013. Disponível em http://www.piketty.pse.ens.fr/files/PikettySaez2013RKT.pdf. Acessado em 15/05/2020.
YOUNG, Michael Dunlop, The Rise of Meritocracy, Thames and Hudson, 1958.
HERKENSON, M, WALDENSTRÖM, D, Inheritance taxation in Sweden, 1885–2004: the role of ideology, family ?rms, and tax avoidance, Economic History Review, 69, 4 (2016), pp. 1228–1254, 2016.
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